Nos últimos meses têm sido intensamente comemorados, lembrados e interpretados o 25 de Abril, as difíceis lutas que o viabilizaram e os tempos agitados e criadores que o seguiram. Divulgados também inúmeros testemunhos, a maioria verdadeiros, úteis e exemplares, outros algo empolados, reescritos ou mesmo forjados. As invenções, todavia, nem sempre são propositadas, já que são produzidas por quem, de forma genuína, confunde situações vividas e outras sobre os quais apenas leu ou ouviu falar, combinando vivências e sentidos colhidos em diferentes fases. A «memória construída», reconhecida hoje pelas ciências cognitivas, é um processo de leitura do passado que tende a refazê-lo ou a mascará-lo, sendo, porém, útil como forma de compreender o momento em que se revela.
Os múltiplos olhares sobre o 25 de Abril e o seu tempo a que estamos a assistir podem distribuir-se por três registos diferentes, embora por vezes complementares. O primeiro deles é o celebratório, consistindo sobretudo na organização de iniciativas oficiais que procuram lembrar, muitas vezes apenas de uma forma cerimonial, aquele tempo de profunda viragem da nossa história contemporânea. Não é difícil perceber como algumas dessas celebrações são organizadas como um dever e um ritual, assim falhando no impacto, em termos de conhecimento e de exemplo, que de outro modo poderiam ter junto das gerações mais novas. Muitas outras têm sido festivas e autênticas, sem dúvida, mas ainda assim, se se limitarem ao lado evocativo e oficial, tomam um sentido tristonho e inócuo, sempre voltado para o passado.
O segundo registo é o nostálgico, levado a cabo por quem, daquele período, tem sobretudo uma leitura heroica e emotiva, marcada pela forte recordação de um tempo de juventude e de esperança. A nostalgia, escreveu a teórica cultural e romancista Svetlana Boym, traduz «um sentimento de perda e de afastamento», como «um romance estabelecido com a nossa própria fantasia» fundado numa relação pessoal com o passado. Não é necessariamente retrógrada e contemplativa, podendo até partir desse olhar sobre o passado para uma dimensão dinâmica, mas requer experiências e pressupostos que são sobretudo pessoais, logo difíceis de transmitir. Por isso, pautar a evocação do 25 de Abril, sobretudo junto de quem o não viveu e o conhece mal, por uma dimensão nostálgica, é caminho certo para a incompreensão.
Já o terceiro registo, o mais dinâmico e útil, é o crítico. Parte da observação histórica, para situar os acontecimentos no seu tempo, compreendendo-lhes o impacto, projetando-lhes a influência e abrindo caminho à compreensão das lições e dos estímulos que eles podem oferecer aos diferentes desafios que agora nos cabem. Situa-se no campo do diálogo entre tempos e gerações, voltando-se por isso para o futuro. Tendo sempre como eixo inestimável a valorização da democracia e das possibilidades de criação, justiça, progresso e diversidade que apenas esta oferece. Abrindo ainda mais, usando palavras do poeta Ary dos Santos, «as portas que Abril abriu». Desta forma combatendo o registo contrário, negro e monocórdico, pautado pelo ódio e pela desigualdade, produzido pelos inimigos do 25 de Abril, que o são também da liberdade e da democracia.